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Somos todos responsáveis, diz uma ala da sociedade diante da criminalidade e da vergonhosa miséria nacional. Somos todos culpados, diz outra ala diante dos descalabros da vida pública.

As duas afirmações são manifestações do coletivo. Elas ultrapassam a vida individual e trazem de volta a presença da totalidade da vida. Soam como trovões, lembrando ao nosso individualismo, o modo pelo qual a personificação do todo surge em algumas religiões. Se somos livres para escolher, por que não liquidamos de vez com as desigualdades que desembocam na violência e no crime?

É preciso um certo ângulo para tornar relativo o credo de que o coletivo se reduz aos indivíduos que a constituem. Alguns grandes teóricos da sociedade diziam, no fim do século 19, que o coletivo não pode ser reduzido às suas partes. A água é H2O, mas seria ridículo reduzir a experiência do seu frescor e da sua fluidez à presença de duas moléculas de hidrogênio e uma de oxigênio. Dito de outro modo, a sensação de fluidez e, acima de tudo, os símbolos que esse estado constroem em coletividades diversas, não podem ser reduzidos à sua mera composição natural ou química. Imagine reduzir lágrimas à mera combinação de hidrogênio com oxigênio.

Freud complicou as coisas quando introduziu a noção de inconsciente num ambiente intelectual marcado por teorias do comportamento baseadas na racionalidade individual. Se aumentar poder, riqueza, bem-estar e saúde seriam o foco da vida individual, como explicar as tendências de destruição que observamos em muitos comportamentos? Como explicar não só o desejo de drogar-se, como também o de roubar e mentir, que fazem parte do mundo tal como o conhecemos? É necessário não esquecer o outro lado. O fato de que todas as sociedades lidam permanentemente com a vida e com a morte; com o puro e com o impuro; com a saúde e com a doença; com a alegria e com a tristeza; com o certo e com o errado; com o individual e com o coletivo.

Minha mãe está ao piano e toca, com admirável destreza e expressividade, uma série de músicas. Como era do seu feitio, ela simultaneamente derrama notas e palavras. Num dado momento, remarca que Renato (seu marido e meu pai) gosta de músicas “pesadas” como alguns tangos de Discepolo e “O Despertar da Montanha”, de Eduardo Souto. Mas ao mencionar esse pendor para o melancólico, trata de aliviar o ambiente, interpretando, desse mesmo Souto, o delicioso “Tatu Subiu no Pau”, para, em seguida, atacar a marchinha de Lamartine Babo, “História do Brasil”. Depois de alguns acordes, ela se acompanha e, cantando, comenta “a maravilha” do verso central dessa composição escrita em 1934:

“Quem foi que inventou o Brasil?
– Foi Seu Cabral! Foi Seu Cabral!
– No dia 21 de abril…
– Dois meses, depois do carnaval!”

Fantástica essa assertiva sociológica musicada de Lamartine Babo que, como remarquei num ensaio sobre o carnaval, situa a festa de Momo como o marco para um Brasil não descoberto, mas inventado. Um duplo deslocamento revelador dessa manifestação coletiva que nos obriga a ler o Brasil de trás para frente.

Terminado o recital diário, cujo testemunho era o mutismo amoroso de papai, ela sorria, remarcando – a seu modo – a alegria, a energia e a beleza liberadas por essas músicas que ajudam a viver.

Essa experiência levou-me à pergunta: mas quem, afinal de contas, interpreta quem? Era mamãe que interpretava Souto, Discepolo e Babo ou eram eles que interpretavam aqueles que davam vida às suas partituras?

Quem interpreta? Ou se sente na obrigação de “fazer alguma coisa”, diante de alguma situação coletivamente definida?

Somos todos culpados ou é a sociedade que, vista por um certo ângulo e diferindo de nós, nos devolve em forma de dejeto o que não queremos enxergar?

Quem não entende o que digo vá correndo assistir ao espetáculo “Saçaricando”, escrito por Rosa Maria Araújo e Sérgio Cabral. Nele, você viverá o poder mágico do coletivo encarnado nas 87 marchinhas carnavalescas trazidas à vida por um grupo afinadíssimo de intérpretes. Desde o acorde inicial da primeira marcha carnavalesca a platéia canta, revelando o milagre da memória automática que retoma a questão: quem está cantando quem? São as marchinhas que nos cantam ou é justamente o oposto?

Quando terminei a leitura do maravilhoso livro do José Murilo de Carvalho sobre D. Pedro II, não pude deixar de novamente interrogar. Quem, afinal, foi mais brasileiro e expressou mais o Brasil? O imperador órfão, treinado para ser um indivíduo capaz de “moderar” as paixões políticas coletivas que o cercavam? Ou o estilo brasileiro de politicar que, de tanto ser moderado por um indivíduo sem amigos, acabou por destruí-lo?

O ESTADO DE SÃO PAULO – CADERNO 2 – Quarta-feira, 5 setembro de 2007 – Roberto DaMatta

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